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Hospitalidade e Cultura da paz

A reflexão tem como objetivo buscar as associações entre hospitalidade e cultura da paz. A hospitalidade, assunto antigo, mostra-se tema presente e atual. Afinal, a trabalho ou a passeio, nunca se viajou tanto neste mundo. A esse deslocamento todo somam-se as estimativas da ONU informando que, nos próximos anos, mais de um bilhão de pessoas vão deixar suas moradias, seja devido a catástrofes naturais, derivadas das mudanças climáticas, seja para fugir de guerras e perseguições religiosas. Impõe-se, desse modo, a exigência do aprendizado do viver junto, tarefa fundante da hospitalidade, que passa a configurar um novo campo de saber.

A hospitalidade é tema complexo e com muitos recortes. Uma primeira aproximação aqui desenvolvida, faz referência à produção do conhecimento formal sobre o assunto. Um segundo ponto é que a hospitalidade tem suas raízes na dimensão simbólica e mítica. Por ser paradoxo e utopia, a hospitalidade nos ensina que é construção humana da relação com o outro, resultante do movimento dialético desdobrado em limite, alteridade, identidade e encontro. Além disso, a associação entre hospitalidade e paz já está explicitada, no pensamento kantiano, há mais de dois séculos. Frente às demandas de um mundo desencantado, cabe atualizar o entendimento desse vínculo – hospitalidade e paz.

O conhecimento da hospitalidade

A produção do conhecimento sobre a hospitalidade é abrangente e permite uma pluralidade de leituras, reproduzindo diferentes paradigmas, diversas visões de mundo. Nossa escolha recai sobre alguns autores. O pensador francês Montandon i, por exemplo, dá à hospitalidade o papel de substrato da sociedade, ao afirmar que a hospitalidade é um modo de se viver em sociedade, “uma maneira de se viver em conjunto, regida por regras, ritos e leis”. Para ele “a hospitalidade é concebida não apenas como uma forma essencial de interação social … mas como uma forma própria de hominização, ou, no mínimo, uma das formas essenciais de socialização”. Para a filósofa portuguesa Baptistaii, a hospitalidade “designa uma competência de cidadania reclamada pelas exigências do viver em comum, pela necessidade de viver com e para os outros em instituições justas”. E Denckeriii, uma das pioneiras na reflexão sobre o tema no Brasil, expõe a dimensão política da hospitalidade ao dizer que nem sempre as cidades são hospitaleiras, e que “afirmar a cidadania, respeitar o ambiente, reduzir a desigualdade e com ela a violência e a exclusão, são pontos fundamentais de uma política de hospitalidade”.

No pensamento de Boffiv a hospitalidade está relacionada aos mínimos cuidados humanos: “ser acolhido sem reservas, poder abrigar-se, comer, beber e descansar. Sem esses mínimos materiais ninguém vive e sobrevive”. Além desse mínimo material, a hospitalidade requer um mínimo espiritual: “a capacidade de acolher incondicionalmente, de ser solidários e cooperativos e capazes de conviver”. E o autor afirma “quando executada em sua plenitude, a hospitalidade e a convivência revelam aquilo que ocultam: a lógica do universo e da vida”.

Hospitalidade, símbolo e mito

A hospitalidade, por outro lado, tem suas raízes na dimensão simbólica. A palavra symbolos, em sua origem grega, significa marca, sinal de reconhecimentov. Faz sentido, considerando-se que o termo símbolo, decorrente do verbo sim-bállein, quer dizer reunir. Na Grécia antiga designava um pequeno objeto que era quebrado e repartido em dois. Cada pedaço ficava com uma das partes interessadas, para servir como prova de identidade de ambas e sinal de reconhecimento. Símbolo, contra-senha de hospitalidade, no império romano era denominado tessera hospitalitas.

O mito da hospitalidade está presente na mitologia grega, na Bíblia e em diversas culturas e representa a visita de um deus a casa de um mortal para testar sua hospitalidade. Na literatura dos mitos greco-romanosvi, a deusa da hospitalidade é Héstia, em grego, ou Vesta, no mito romano, e está em permanente interação com Hermes, filho de Zeus – aquele que chega – Mercúrio, na designação latina. Hermes representa o peregrino, aquele que vem pelos campos (per + agri). É associado com o que chega, o hóspede, o que é recebido, o turista, o imigrante, o estranho, o estrangeiro, o outro. Deus das viagens, está presente em cada pedra (hermai) do caminho, assinalando por onde seguir. Deus das passagens, simboliza a troca entre o céu e a terra. Deus da comunicação, é o mensageiro dos deuses, leva uma boa palavra, uma boa nova, em grego euaggélion, isto é, o evangelho. É sabedoria e consciência do saber. É, ao mesmo tempo, o deus do hermetismo (do mistério) e da hermenêutica (a arte de decifrá-lo). De modo objetivo, representa o conhecimento “vindo dos quatro pontos cardeais e de todos os níveis de existência”. De modo subjetivo, representa o entendimento humano, “os múltiplos aspectos ou interpretações que tomam a palavra no espírito das pessoas, todas igualmente convencidas de que entenderam bem”.

Héstia, deusa da hospitalidade, permanece imóvel no centro do Olimpo, sendo considerada o princípio abstrato de lar. Ao contrário de outros deuses, sua representação não ocorria na forma humana, mas, sim, pela chama viva, única deusa cultuada em todas as casas dos homens e nos templos de todos os deuses. Em tempos antigos, cada cidade-estado grega tinha a sua lareira comum, assim como cada casa. Quando dois jovens se uniam pelo casamento, a mãe da noiva acendia uma tocha em sua casa e a transportava diante do casal até sua nova casa, para que acendessem a primeira chama de seu lar, tornando-o, por esse ato, sagrado e protegido. Do mesmo modo, quando alguém deixava sua cidade natal, impregnado do espírito de Hermes, levava consigo o fogo sagrado, de tal forma que, onde quer que se aventurasse a estabelecer um novo lar, Héstia estaria junto. Héstia, a chama que aguarda, é também a que ilumina o caminho de Hermes.

Hospitalidade, paradoxo e utopia

A hospitalidade traz presente a questão do paradoxo e da utopia. De um lado, coloca-se a questão etimológica, já que as palavras hospitalidade e hostilidade têm a mesma origem. Do mesmo modo, hôte em francês, e xenos em grego representam tanto quem recebe como quem é recebido. Derrida considera a hospitalidade uma palavra-noite, um paradoxo. A hospitalidade afirma-se incondicional, mas está sempre determinada pelas condições da realidade, sendo impossibilidade de realização integral e, portanto, utopia. E aqui cabe a questão de Konder : “Em que medida a utopia é sonho irrealizável e a partir de que ponto passa a ser o sinal de uma realização possível?”. Boff ix considera a hospitalidade uma prática e uma utopia. Como utopia a hospitalidade “representa um dos anseios mais caros da história humana: de ser sempre acolhido independente da condição social e moral e de ser tratado humanamente”. Nesse sentido seu papel, enquanto utopia, é de possibilidade ética.

Montandon questiona a dimensão utópica da hospitalidade, como pressuposto da nostalgia de uma hospitalidade original perdida. Isso porque, diversas obras do século XVIII, referem-se ao “tipo ideal do bom selvagem, praticando uma hospitalidade aberta e sem limite”. Sua crítica denuncia a inexistência de uma hospitalidade natural e universal, e reafirma o entendimento da hospitalidade como construção humana da relação com o outro.

Hospitalidade e encontro

A hospitalidade, então, é sempre relação social e o conseqüente reconhecimento do outro. Hospitalidade é encontro. Na análise do pensamento de Buberxi e Moreno sobre o encontro, resulta o aprendizado deste como base da relação e do homem entendido como ser eminentemente dialógico: estar no mundo é estar no mundo com o outro. Baptista amplia o pressuposto ontológico e anuncia: viver é existência com o existente. Para a autora, a hospitalidade é um dos traços fundamentais da subjetividade humana, pois representa a disponibilidade da consciência para acolher a realidade do fora de si. E lembra Levinas: o encontro com o outro ser humano é uma experiência traumática. Mais que reconhecimento ou troca, o encontro é produção comum, é resultante única e singular, e, para além dos envolvidos, é produção do terceiro lugar.

Oferecer hospitalidade, para Montandon, é tomar consciência, descobrir e apreciar as próprias riquezas. Dito de outra forma, a chegada do estrangeiro/ do outro é a ocasião da descoberta de si e de um novo olhar sobre seus próprios recursos. A hospitalidade, assim, revela a relação dialética com o outro, por meio da qual ocorre a apropriação da própria identidade. A hospitalidade é limite, há o que está e o que chega, os fixos e os fluxos, os sedentários e os nômades, até o sair de si ao encontro do outro. Como limite, a hospitalidade aponta a existência de um outro; o fora, os fluxos, os nômades, o não-eu. Então, reconhecer a alteridade significa explicitar uma identidade. Na apropriação da identidade, é possível entender o outro como outro, o outro em sua singularidade. E aí se faz possível o encontro, quando se reconhece o outro como igual na condição humana. Nessa dinâmica se estabelece a identidade e a cidadania.

Hospitalidade e paz

Kantxvi, em 1795, vai propor a paz perpétua tendo como pressupostos o cosmopolitismo e a hospitalidade universal. O cosmopolitismo tem por base a formação de uma comunidade planetária, inclusiva, democrática, tolerante, solidária e pacífica. Para tanto, a hospitalidade deve ocorrer na esfera do direito – e não da filantropia – o direito de hospitalidade, de acolhimento do estrangeiro. Essa discussão assenta-se em sua visão ético-política que reconhece “o fato de habitarmos num espaço finito como é a superfície terrestre que, por ser esférica, não permite que os homens se estendam até o infinito, obrigando-os então a procurar entender-se e estabelecer relações pacíficas entre si”.

A proposta kantiana mostra-se assim, precursora da idéia de “cultura da paz”, conforme formulada pelo UNESCO na Conferência de Yamoussoukro em 1989, que propunha o “desenvolvimento de uma cultura da paz embasada em valores universais de respeito à vida, da liberdade, da justiça, da solidariedade, da tolerância, dos direitos do homem e da igualdade entre homens e mulheres”. Mas, é a partir da Declaração do Milênio em 2000, pacto da ONU com mais de 190 países, que é formalizado um compromisso compartilhado com a sustentabilidade do planeta, entendida em sentido amplo. Em 2001, Kofi Annan, secretário da ONU, em declaração feita no lançamento do Ano Internacional da Paz amplia o conceito da paz e o apresenta como agregador de todos os aspectos formulados na Declaração: “a verdadeira paz é muito mais do que a ausência de guerra. É um fenômeno que envolve desenvolvimento econômico e justiça social, supõe a salvaguarda do ambiente global e o decréscimo da corrida armamentista; significa democracia, diversidade e dignidade; respeito pelos direitos humanos e pelo estado de direito; e mais, muito mais”.

A se depreender dessa fala uma proposta de cultura da paz, isso se desdobra em inúmeras implicações. Primeiro, a crítica a este nosso mundo desencantado, onde o capitalismo global responde pela desigualdade estrutural entre Norte e Sul, com reflexos diretos na vida das pessoas e das nações, nas dimensões econômica, social e ambiental. Em decorrência, a crítica ao modelo ideológico vigente, no qual dominam os valores pós-modernos do individualismo extremo, referenciados no medo e no mal (nos tantos males que nos rondam, provenientes das forças da natureza ou das mãos humanas, como sinaliza Baumann).

Sem deixar de reconhecer as fundas cicatrizes daí resultantes, tais como o descrédito generalizado na vida e a negação do devir, uma proposta de cultura da paz vai implicar, prioritariamente, na adoção de um pressuposto ético que assume uma atitude de esperança frente a um futuro passível de ser construído pelo homem. Vai implicar antes e acima de tudo na aceitação da presença do outro nesta nossa “casa comum, o planeta Terra”. Vai implicar no desafio de se construir um modo de viver novo, um modo de vida regido pela hospitalidade, pelo aprendizado do viver junto, um modo de viver em paz.

Autor: Iara Maria da Silva Moya, Fonte: Site Convivência e Paz, março de 2009, http://convivenciaepaz.org.br/artigos/hospitalidade-e-cultura-de-paz/